domingo, 9 de julho de 2017

Um retângulo transparente

97 anos de memórias para recordar - 2017

Um retângulo transparente separa-me do mundo real
Um rosto trançado em que a vida deixou muitas marcas, algumas lascas, várias alegrias
Através do retângulo tudo passa em desenfreada pressa
A experiência tem intrínseco o tempo, e o tempo a limitação de uma janela.


Se sou feliz? Muito. Sou grata também. Mas há um peso em cada ano que nublou em meus olhos a dádiva da leitura.


Quando o dia comprido chega, entre um café e um almoço, o pão caseiro cujas fatias se agigantavam nos pratos deixou de ser necessário. São tantas lembranças...


E o Matero? Sempre aparecia um novo. De repente, sob o olhar severo e germânico do marido dedicado, um cão sem dono era adotado. Ou era Matero ou era Rex. Logo se tornava um membro da família com direito a um pedaço de linguiça.


A casa, esta sim era uma relíquia. Com antiguidades e objetos valiosos. Vinha gente importante comprar e dava um orgulho só. Os preços eram rigorosamente calculados em dólar, escritos a caneta sobre a fita esparadrapo. A meia-noite todos os relógios faziam dim dom, dim dom, coisa de filme.


Vez ou outra a família se reunia para ouvir música alemã. Arriscado era tentar uma conversa nesta hora. Se era pra ouvir, era pra ouvir.


Jabuticabas e ximxins deveriam virar geleia, mas as crianças astutas burlavam a ordenança e comiam tudo escondido.  E quando todos se reuniam era uma festa de pega-pega e esconde-esconde. Nada de Wi-Fi.


A felicidade era construída no dia a dia, na doação, no respeito, na união. Todos os dias o sabiá cantarolava enquanto o Rex e o Matero esperavam pelo seu pedaço de linguiça.  


É assim que a vida vai passando. E agora só tem prédios altos na Rua XV de Novembro e as vitrines são feias.


Quando o retângulo transparente se torna tão cruel quanto às limitações que a velhice traz, só posso recordar em minha cadeira de balanço e esperar que alguém não somente passe em frente à minha janela, mas que dedique um tempo, um carinho, um beijo.


Porque todos tem ao final da vida  uma janela e as suas memórias.




domingo, 28 de fevereiro de 2016

o último clique


a criança cheia de sonhos senta-se a pensar sobre o seu futuro
clica e passa para a próxima fase
queria correr no parque, brincar de pega-pega e rir à toa de qualquer bobagem
clica e passa para a próxima fase
na adolescência quer namoricar de brincadeira, se revoltar um pouco e curtir as tardes com os amigos
clica e passa para a próxima fase
ainda realizar o sonho de se formar, ser doutor, compositor ou qualquer outra profissão
clica e passsa para a próxima fase
talvez casar, ter filhos, ler livros, comer um churrasco
clica e passa para a próxima fase
viver orgasmicamente os dias, apalpando a vida, os instantes
entre um doce e outro, entre um beijo e outro, entre um acordar e outro
clica e passa para a próxima fase... eterna
acabou

pare de clicar e sinta

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O seminarista que andava pelado

Revoltou-se, pois, o seminarista enquanto em seu estado introspectivo estudava

Se o tecido cobre a alma, também esconde o pecado

Ali ao lado pode muito bem morar a santa ignorância.

Dia vai, dia vem e as capas uniformizavam o seu espírito saltitante

Era um tédio...

Mas o conhecimento diário ainda alimentava os neurônios que viviam nus entre um pensamento e outro

- Isso sim vale muito a pena! resmungava

Ansioso pelo próximo capítulo e o próximo também. Haveria outro? O derradeiro?

Tudo no seminário era tão rico e tão pobre, tão tudo e tão nada, tão espiritual e tão carnal

Bom mesmo seria estar pelado do espírito para absover a essência do aprendizado, sem filtro, mas com a mente aberta ao novo e puro, ao essencial.

O seminarista queria a receita da felicidade.

Foi assim o aprendizado do primeiro sermão... 
... sob o olhar estarrecido dos alunos o grande mestre apareceu pelado e começou o discurso com a seguinte reflexão:

- O corpo é a casca da alma. Pode a casca dizer se o fruto é bom?

domingo, 25 de outubro de 2015

Incertezas

Eu prefiro tanto Português a Matemática que chego a me espantar como me irritam as incertezas.
Construo uma personagem a cada dia e tento me adequar a essa realidade medíocre, de bonecos e palhaços, o palco é o mundo.

Quem me dirá a verdade sobre esta realidade?

Somos marionetes?

Deixa-me ser, deixa-me ser, por favor. Não consigo ver o sentido dessa representação teatral, quero olhar através dos teus olhos, por dentro de você como se fosse um portal para a alma humana.
Aonde você está?

Escondido, talvez, em tua personagem. Fazes de conta que és humano, mas o teu gene é o que acalenta a camada de visualização. O que vejo é tão superficial, só parece, não é.

Mostra-te. Posso escrever a tua história?

Ser também dói.

Mas eu quero ir além da sobrevivência, quero a essência, a profundidade. Títulos não me bastam, quero saber para ser. Não desejo apenas parecer, isso é somente uma personagem da inutilidade humana.

Por que a massa se auto-esmaga? Corroem-se aos poucos, como vermes que perfuram e comem a carne, não há tempo para decomposição.

Esse é o retrato do teatro do planeta, pessoas comem e se comem, literalmente.

Alimentam-se umas das outras em um canibalismo assutador. No subterrâneo dos cérebros a verdade está, imune.

Mostra-te. A tua verdade pode ser melhor do que toda esssa representação. Podes encontrar compaixão, êxtase e vida longe de uma realidade inventada. Vida é ser você, mesmo que todos estejam fazendo de conta que são reais.

A realidade

Tomou coragem, saiu à rua e se mostrou. Com um traje qualquer, corpo magro, olhos acinzentados e cabelos escuros tomou um bocado de terra em suas mãos enquanto, agachado, olhava o vai e vem das pessoas.  Andando entre a multidão, ora esbarrava em alguns, ora sentia o vento quente em seu rosto. Todos tinham pressa.
Seu corpo ainda podia sentir o sexo matinal. Intenso. Fresco. Louco. Daqueles dias arrebatadores e hormonais em que a cópula é a união de dois corpos incandescentes.

Ninguém o viu, nem sentiu o seu cheiro de sexo fresco. Alheio às personagens humanas e à ansiedade de todos em mostrarem a irrealidade interior, pareciam mesmo saciados, lindos, realizados. Um modelo de sucesso.


Foi uma revelação fracassada. Pessoas querem ser fantasmagóricas e aos cegos não se pode descortinar a imagem.

Aqui e agora, alguém nasce e outro morre. É assim.
  Nisso não há representação, não há teatro, é fato. Viver está além de tantas coisas.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Il feel like a dog



Deixa eu ser o teu cachorro
Lamberei a tua mão quando chegares e não farei xixi no pneu do carro
Serei educado, prometo
Em hipótese alguma morderei
Eu só quero o teu carinho, declina o teu olhar para mim
Estou faminto por um afago
Sou quase previsível, é tão fácil fazer-me contente
Sou daquela raça que reflete a sua personalidade, conhecido por docilidade e profunda ferocidade para defender a sua casa
Sou eu – nem lindo, nem feio
Sou bom presságio para quem deseja o melhor amigo
Deixa eu ser o teu cachorro
O meu cio é monogâmico e manterei a ordem e os chinelos intactos
Sou tão fácil
Sou nirvana, o ápice do lindo, do eterno, da plenitude
A inércia não me consome mais, porque posso ter tudo se me acalentares
As pulgas terão inveja se me deres um pouco de ti
E serei mais feliz como cão
Sou humano, mas isso não me basta
Não quero grunhir como um cão para uma migalha de posição social
Eu quero sentimento, intensidade e verdade
Eu quero humanidade
Deixa um pouco de ti para mim, dá-me mais que a ganância por poder, dá-me a liberdade de um cão.
Morde por um osso, lambe por um afago, pula por um beijo e vive um dia de cada vez!

sábado, 14 de março de 2015

Escrever é o melhor remédio



Um dia você é filho e no outro você tem filhos

De repente você é mãe do filho e mãe dos pais

Estranho a inversão das coisas que nos levam do fim ao início

Em vez de obedecer você decide

Em vez de fazer birra você controla, afetuosamente

Não tem mais a bronca por deixar tudo fora do lugar, nem a ordem: “você não pode isso ou aquilo”

Enquanto tudo acontece uma avalanche de coisas inúteis tomam um tempo que não volta.

Neste campo minado, que é a vida, todo dia pode ser o último.

E a eternidade não é aqui.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

alzeimer



Rugas que escondem a história de alguém

Sulcos de lágrimas, corridas incessantes que se emaranham entre ontem e o amanhã

Recorda o ontem, quando o pode lembrar

Senta-se em seu balançar na cadeira diária da esperança

Mas a sua herança pode ser mais do que os sulcos da experiência, interfere no seu tratamento

Gosta-se pelo que se tem e pelo que se pode deixar

O gene? Para que serve?

A experiência? Ninguém quer saber.

A história da vida enfada a alma dos sucessores que desejam ardentemente a liberdade do cuidado

Liberdade é a terceira idade a que todos terão um dia e para a qual ninguém se prepara

Somos a geração da ESTATÍSTICA que prega muitos velhos em poucos anos

O que será de nós, brasileiros, sem aposentadoria, sem plano de saúde, sem cuidadores, sem ninguém que nos acolha?

Teremos pelo menos a nossa mente para lembrarmos da juventude resplandescente?

Entre as voltas e os abismos de cada cérebro há uma  história para construir entre os anos que se vão


Construo a minha e você constrói a sua. Lembremo-nos pois quando a estatística bater em nossa porta.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Era uma vez...



Era uma vez…

eu

você

um cachorro

eu esperei  o momento certo

você buscou a oportunidade

e o cachorro saltitante latiu, lambeu  e alegrou-se pela nossa chegada.

Eu construí referências materiais

Você correu entre A e B

e o cachorro saltitante latiu, lambeu  e alegrou-se pela nossa chegada.

Eu pensei ter sucesso em tantas coisas

Você tornou-se um ganhador exímio de congratulações

e o cachorro saltitante latiu, lambeu  e alegrou-se pela nossa chegada.

Eu achei que eu pudesse ser eu

Você que pudesse ser você

Não estaríamos esquecendo de sermos nós? E em uma fusão de pronomes que como um metal derretido se unem e derretem qualquer mágoa, qualquer irregularidade que transtorna as vidas tão únicas. É assim que se chega ao canto do mundo. Quando o meu eu + o teu eu são uma eterna e exclusiva conta matemática: eu + você = nós

Eu, porém, continuo sendo eu

Você, continua sendo você

Mas o nosso nós fortalece laços humanos indissolúveis, muito além da carne ou do tipo sanguíneo, muito além da cor ou da classe social, muito além das crenças e das diferenças

MAS ENQUANTO EU TENTO SER SOMENTE EU E VOCÊ TENTA SER SOMENTE VOCÊ
o cachorro saltitante late, lambe e alegra-se pela nossa chegada.


http://youtu.be/bYu5PWld89g