97 anos de memórias para recordar - 2017 |
Um retângulo transparente separa-me do mundo real
Um rosto trançado em que a vida deixou muitas marcas, algumas lascas, várias alegrias
Através do retângulo tudo passa em desenfreada pressa
A experiência tem intrínseco o tempo, e o tempo a limitação de uma janela.
Se sou feliz? Muito. Sou grata também. Mas há um peso em cada ano que nublou em meus olhos a dádiva da leitura.
Quando o dia comprido chega, entre um café e um almoço, o pão caseiro cujas fatias se agigantavam nos pratos deixou de ser necessário. São tantas lembranças...
E o Matero? Sempre aparecia um novo. De repente, sob o olhar severo e germânico do marido dedicado, um cão sem dono era adotado. Ou era Matero ou era Rex. Logo se tornava um membro da família com direito a um pedaço de linguiça.
A casa, esta sim era uma relíquia. Com antiguidades e objetos valiosos. Vinha gente importante comprar e dava um orgulho só. Os preços eram rigorosamente calculados em dólar, escritos a caneta sobre a fita esparadrapo. A meia-noite todos os relógios faziam dim dom, dim dom, coisa de filme.
Vez ou outra a família se reunia para ouvir música alemã. Arriscado era tentar uma conversa nesta hora. Se era pra ouvir, era pra ouvir.
Jabuticabas e ximxins deveriam virar geleia, mas as crianças astutas burlavam a ordenança e comiam tudo escondido. E quando todos se reuniam era uma festa de pega-pega e esconde-esconde. Nada de Wi-Fi.
A felicidade era construída no dia a dia, na doação, no respeito, na união. Todos os dias o sabiá cantarolava enquanto o Rex e o Matero esperavam pelo seu pedaço de linguiça.
É assim que a vida vai passando. E agora só tem prédios altos na Rua XV de Novembro e as vitrines são feias.
Quando o retângulo transparente se torna tão cruel quanto às limitações que a velhice traz, só posso recordar em minha cadeira de balanço e esperar que alguém não somente passe em frente à minha janela, mas que dedique um tempo, um carinho, um beijo.
Porque todos tem ao final da vida uma janela e as suas memórias.
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