domingo, 23 de maio de 2010

O prato de comida

Os limites determinam o lugar, o momento, a ação e a reação que convencionalmente se deve ter. Restringir, não ultrapassar a linha de demarcação é o princípio para não se meter em confusões desnecessárias. Falo de um homem, especificamente. Não que merecesse um texto, pois me parece apenas mais um entre tantos, popular, tão popular que fico até indecisa se há conjunto de palavras suficiente para que se forme uma história.

A bicicleta velha era o meio de transporte utilizado, o automatismo psíquico quase surreal, o corpo sujo de pedinte e um cheiro nauseabundo insuportável causavam repulsa. Talvez o ser esquisito vivesse mesmo como morador sem casa, em qualquer parte, comendo quando outro ser, da mesma espécie, que se achava melhor, bem limpo e perfumado, quiçá um doutor impecavelmente branco, quase pálido oferecia um prato de comida. E o moribundo sentia-se saciado por algumas horas. E o doutor, sentia-se tão bom, tão bom que pelo resto do ano contava suas benevolências e a capacidade de ajudar que possuía, não podia deixar um moribundo sem um prato de comida. Por que os doutores, médicos ou não, pensam que são agentes beneficentes? Um prato de comida pode conferir este atributo? Mas aquele era um doutor de verdade, com agenda cheia e muita roupa branca. Tinha até mesmo uma rotina. Porque ter rotina já é um sinal de vida melhor. Trilhava o mesmo caminho todos os dias... e todos os dias via o moribundo. Na ocasião da Páscoa e do Natal pedia à empregada que separasse as roupas que não usava mais e, juntamente com o prato de comida, ofertava ao homem com aparência esdrúxula da rua Sete.

O esquisito sem nome perambulava pela cidade e recolhia-se na rua Sete todos os dias do ano, tinha uma rotina também, não trabalhava. Deixava o corpo viver como desejasse, se comia, comia; se bebia, bebia; se morresse, quem se importaria? Havia possibilidade de ter o corpo estudado para fins científicos.

O que ninguém sabia é que a vida sem propósitos fora uma escolha, não uma imposição. O esquisito perdera o rumo, a essência, os entes queridos, os bens imateriais, a dignidade. A fortuna que dispunha não lhe trazia ventura. O mundo sucumbira. Não desejava a vida, existir era o suficiente. Metediço era o prato de comida.

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